Em toda a história da teologia cristã a
filosofia esteve presente, porque o cristianismo cresceu em um mundo helênico,
dominado pela visão filosófica grega, embora com governo romano. Logo, os
teólogos que sucederam os apóstolos utilizaram muito do raciocínio filosófico
para elaborarem a teologia e até hoje teólogos se utilizam da lógica
aristotélica e das teorias dos filósofos contemporâneos para elaborarem seus
tratados teológicos. Um estudo um pouco mais acurado revelará que Paulo, João,
que foram apóstolos de Cristo, citaram filósofos ou pensamentos filosóficos
como ponto de contato para apresentar o Evangelho de Cristo.
Durante a história da igreja cristã
muitos teólogos como Agostinho, Tomás de Aquino, Bultmann, e outros utilizaram
a Filosofia na construção da teologia. No século XXI não é diferente essa
convivência da filosofia com a teologia cristã.
Muito do que é defendido nas igrejas são resultantes de uma influência
filosófica direta ou indiretamente. Existe uma velada oposição de filósofos e
pensadores ateístas como Richard Dawkins com relação a teologia, muito desta
oposição é fertilizado pelo terrorismo islâmico, os escândalos no meio da
Igreja Católica com Pedofilia e a Teologia da Prosperidade no meio Evangélico! E
por outro lado, existe uma hostilidade da cristandade, na sua maior parte, em
relação a importância da filosofia e a contribuição que esta pode dar ao
desenvolvimento teológico.
Pretendo dentro dessa panorâmica
histórica de relação de amor e ódio entre esses dois campos, abordar pontos
positivos e negativos. Buscando uma sincera reflexão sobre o valor de cada área
para a humanidade e o respeito que deve existir de ambos os lados.
1.
Metodologia
É importante iniciar com definições de
cada área, por isso começarei com a teologia. O que é teologia? São duas
palavras gregas usadas que traduzidas fica assim: “theós” que é Deus e a
segunda é “logia” que é estudo,
tratado. Logo, a teologia é um estudo ou tratado sobre Deus, é colocar Deus no
nível do discurso humano. Mas o que seria teologia cristã? É a teologia
desenvolvida dentro da igreja cristã, iniciando com os apóstolos e percorrendo
a Igreja Cristã Primitiva, a Igreja Católica Romana e posteriormente também o
Protestantismo, a partir do século XVI. Como afirmou Paul Tillich: A teologia se move para trás e para diante
entre dois pólos: a verdade eterna de seu fundamento e a situação temporal na
qual a verdade eterna deve ser recebida.
Toda teologia partirá do pressuposto da
existência de Deus, mas o ponto variável dentro do desenvolvimento teológico, é
se Deus se revela ou não. Para alguns teólogos cristãos, Deus existe e pode ser
conhecido através da revelação que faz da criação e principalmente por meio da
Bíblia. Para outros, Deus existe em outra dimensão, distante da nossa realidade
e portanto, não pode ter se revelado através da Bíblia, para este ponto de
vista, a Bíblia seria apenas o resultado da religião judaico cristã. Para os
últimos, Deus e a religião, servem como meios de produzir moral e ética,
proporcionando uma boa influência na sociedade. Por exemplo, para o teólogo
Bultmann, que representa bem o liberalismo clássico, defendia que era
necessário desmitologizar a Bíblia, devido ao seu pressuposto de que a mesma é
fruto de crenças mitológicas judaico-cristã.
Logo, percebemos que a teologia tem várias vertentes, e o presente por
finalidade não tem como abordarmos com propriedade todos, mas apenas mencionar
de forma geral.
Mas o que seria filosofia? Também
é composta de duas palavras gregas, sendo a primeira “filos” que é amigo e a segunda “sofia”
que é sabedoria, logo o significado etimológico é “amigo da sabedoria ou amor a
sabedoria”. Paulo
Ghiraldello Jr. Em seu livro “A Aventura
da Filosofia”
afirma que a filosofia é uma curiosidade um tanto esquisita porque ela se
baseia em perguntas que normalmente ninguém faz, a não ser os filósofos. Para
Sproul a filosofia nasceu da antiga busca da realidade última, a realidade que
transcende o que é próximo e comum e define e explica os elementos da
experiência diária. A filosofia pode ser
entendida como consistindo de estudos dos problemas fundamentais da existência
humana, do conhecimento, da verdade, dos valores morais e da mente. É
um campo aberto que não pertence a ninguém por direito de propriedade, mas está
aberto a desenvolver-se a partir de reflexões e discussões racionais sobre a
vida e seu sentido por qualquer um que tenha coragem de andar por essa terra
sem proprietário!
A filosofia é o produto do pensar
humano. No sentido mais amplo e menos técnico, filosofia é a concepção da vida
e do mundo, e nesse sentido sempre houve filosofia, é um campo aberto e sem
proprietário. Em um sentido mais técnico, a filosofia começou na Grécia no
século VI a. C, é lá que ela se
desenvolve, se sistematiza, se organiza como campo de conhecimento.
Foi na filosofia grega, que o conhecimento filosófico é sistematizado,
organizado racionalmente, tendo suas ligações e influencias com os escritos
bíblicos e com teólogos como Tomás de Aquino e Agostinho.
2.
Discussão
2.1 O Início da Relação da Filosofia com
a Teologia
O
cristianismo surgiu em um contexto greco-romano onde a política era romana, mas
a cultura era profundamente helênica. A fala grega, conhecido como grego Koiné,
facilitou bastante a divulgação do Evangelho, o que levou os escritores neo
testamentários, a utilizar a língua grega para alcançar os “gentios” que
pertenciam as igrejas espalhadas por todo o Império. Com um público constituído
de judeus e gregos convertidos ao cristianismo, fez-se necessário a utilização
de pontos de contato culturais, dentre eles, o uso de linguagem filosófica por
parte dos apóstolos, principalmente Paulo e João.
Nos escritos do apóstolo Paulo no Novo
Testamento, encontramos algumas citações filosóficas que demonstram um certo
conhecimento do apóstolo em relação a Filosofia Grega. Ele utilizava esse
conhecimento para evangelizar os gentios, tendo em vista que o Império Romano
vivia sob influência grega. O primeiro texto que menciono é o episódio de Paulo
discutindo com os epicureus e estoicos em Atenas,
narrado por Lucas, em Atos dos Apóstolos 17. 16-34. Paulo é convidado pelos
filósofos atenienses a expor seu pensamento cristão no areópago e durante sua
exposição ele para diante de um altar ao deus desconhecido através dessa
representação, inicia sua exposição sobre Cristo e a ressurreição, fato que era
absurdo para a visão filosóficas daqueles gregos ainda envolvidos pela
mitologia. No verso 28, Paulo cita um filosofo: pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos
poetas têm dito: Porque dele também somos geração. O consenso entre os
estudiosos bíblicos é que Paulo citou o filosofo Epimenêdes, quando menciona o
altar ao deus desconhecido, como um fato ocorrido no passado em Atenas, que
levou a construção do altar ao deus desconhecido.
Mas ao dizer “somos sua geração”, citou um trecho do pensador chamado Arato,
poeta originário de Soli, uma cidade pertencente à própria província da
Cilicia, onde o apóstolo nascera, e da qual Tarso era uma cidade importante.
Arato viveu cerca de 300 a.C. e o que Paulo citou é uma linha do poema de Arato
chamado “Fenômenos”, feito para Zeus: De
Zeus começa; jamais deixemos de amar seu nome. Com ele, com Zeus, estão
cheios...E todos, em tudo, precisamos de ajuda de Zeus, pois também somos sua
geração.” Paulo utiliza de poesia pagã
grega, fruto de uma visão filosófica ainda influenciada pela mitologia, para
aplicar uma parte dessa poesia a Zeus, a figura de Cristo.
Outra
passagem utilizada por Paulo contendo um pensamento filosófico grego para
exortar a igreja de Cristo, encontra-se em Tito 1.12: Foi mesmo, dentre eles, um seu profeta, que disse: Cretenses, sempre
mentirosos, feras terríveis, ventre preguiçosos. Aqui a maioria dos
comentaristas respeitados na teologia ortodoxa, atribui essa citação a
Epimenêdes, que era de Creta, para os quais Paulo escrevia. Existem
outras menções a filosofia que esse apóstolo usou em suas cartas, como 1
Coríntios 1. 22: Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam
sabedoria. Ou Filipenses 4.8: ...se
alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso
pensamento. Nessa última citação, Paulo utiliza de um termo grego,
traduzido por “virtude” usado unicamente nesse momento, porque os leitores
originais da carta eram gregos e por isso Paulo, sabendo da busca grega por “virtude”, utiliza desse
termo para mostrar a eles que “se alguma
virtude existir na filosofia ou na cultura, deveria ocupar a mente deles”. Vou
limitar a destacar esses exemplos aqui.
A
Filosofia grega fez uma transição da mitologia para o Logos. O mito seria a
explicação da passagem do mundo espiritual para o mundo material, é nessa relação,
entre a tragédia e o mito, que os pré-socráticos analisaram a questão da psique
e do princípio “arché”. Tudo
era inicialmente na Grécia explicado a partir de concepções mitológicas, que
era a forma de interpretar a realidade a partir da existência de deuses, os
quais davam sentido ao mundo. Todavia, com o desenvolvimento da filosofia,
inicia uma passagem do mito para o Logos, na tentativa de explicar a realidade,
que é uma forma carregada de racionalidade. Quando
lemos o Evangelho de João capítulo 1 versos 1-3 temos claramente a utilização
proposital de termos gregos pelo apóstolo: No
princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele
estava no princípio com Deus. Todas as cousas foram feitas por intermédio dele,
e, sem ele, nada do que foi feito se fez. Aqui João escreve
para seus leitores gregos que o princípio (ἀρχῇ) de todas as
coisas foi causada pelo Verbo (λόγος) que não é uma
energia cósmica impessoal, mas Cristo, que é Deus encarnado (Jo 1.14). Para
João o “logos” tem uma identidade,
não é apenas uma razão, é Cristo encarnado! Existem outras passagens que João
indiretamente cita algum aspecto filosófico para desenvolver seus argumentos
teológicos, em outros para combater o início do gnosticismo no meio da igreja,
como a sua primeira carta, mas não irei entrar em detalhes desses aspectos,
porque a intenção é apenas mostrar que
os apóstolos utilizaram de termos usados por filósofos gregos, como forma de
contato para evangelizar ou para instruir com o Evangelho de Cristo os que
agora faziam parte da igreja, e antes pertenceram a filosofia metafisica grega.
2.2
Período Patriístico e a Filosofia (100-451
d. C)
O termo “patrístico”
vem da palavra latina pater, “pai”, e designa tanto o período dos patriarcas ou
pais da igreja quanto as ideias características que se desenvolveram nesse
período. Esse período vai do período da conclusão dos escritos do Novo
Testamento (c. 100) até a reunião decisiva do Concilio da Calcedônia (451).
Os pais da igreja são aqueles que viveram no período apostólico e continuaram
ensinando a igreja posteriormente a morte dos apóstolos. Os que se destacam
são: Barnabé (companheiro de Paulo); Hermas (possivelmente o citado em Romanos
16.14); Clemente de Roma (possivelmente este de Filipenses 4.3); Policarpo
(bispo de Esmirna); Papias (bispo de Hierápolis).
De todos citados, menciono para este estudo Justino Mártir (c. 100 –c. 165). Foi talvez o maior dos apologetas do século
2, que se dedicava a defender o cristianismo diante das críticas intensas de
fontes pagãs. Ele procurou associar a fé cristã com a filosofia grega. Sua
doutrina chamava-se de logos spermatikos
(palavra que produz sementes) lhe levou a afirmar que Deus havia preparado o
caminho da revelação final de Cristo por meio de indícios dessa verdade na
filosofia clássica.
O
mais conhecido desse período é Agostinho, sem dúvida. Nasceu no norte da África
em 345 d.C., sua mãe foi uma mulher de vida cristã muito profunda. Ele, porém,
não lhe seguiu o exemplo na mocidade. Aos trinta anos era um mestre brilhante
de retórica e oratória em Cartago. Ele
abraçava a filosofia grega de Platão antes da sua conversão. Teve, antes da sua
conversão, uma vida imoral, irreligiosa, com padrões vergonhosos de acordo com
a época. Ao ouvir a pregação de Ambrósio, nobre bispo, abalou-o profundamente. Ao
ser convertido, tempos depois, tornou-se bispo de Hipona, onde pastoreou por 35
anos, lá escreveu vários livros sobre vários aspectos da vida cristã.
Agostinho combateu todas as formas antigas de ceticismo,
procurando estabelecer um fundamento para a verdade. Ele buscou a verdade na
mente ou na alma, tornando-se o pai da introspecção psicológica. Ficou
conhecido como o “Dr. da Graça”.
Desenvolveu sua própria teologia e filosofia e escreveu o famoso livro: “Cidade
de Deus”. Além deste escreveu também: Um Manual sobre a Fé, a Esperança e a
Caridade.
Agostinho buscava a verdade em Deus, embora muito influenciado por Platão no
seu raciocínio de que a conhecer verdadeiramente é estar em contato com o
inteligível. Agostinho buscou apresentar razões lógicas para crer na existência
de Deus,
obviamente, ele em certo momento do seu argumento filosófico sobre a existência
de Deus, teria que divorciar de muitos pressupostos filosóficos daqueles que
tanto admirou. Todavia, sua forma de construção de argumentação segue Platão e Aristóteles!
Esse
período para a teologia cristã foi extremamente influenciado pela filosofia
grega. Principalmente com relação as duas naturezas de Cristo, amplamente
discutida entre a cristandade ocidental e oriental. Em termos práticos, isso
significa que muitos dos termos centrais da discussão cristológica da igreja
primitiva são gregos, muitas vezes com um histórico de uso dentro da tradição
filosófica grega. O que nos mostra que nesse período existiu uma relação de
amor entre Teologia e Filosofia!
2.3
Idade Média e os Desenvolvimentos Teológicos e Filosóficos (500-1500 d. C)
Quero
primeiramente esclarecer que o termo “Idade Média” foi criado pelos
renascentistas do século XVI, para expressar o período de estagnação que
separou os dois períodos, a Idade Média e a Renascença. O
Escolasticismo fez parte desse período (1200-1500), é comumente instrumento de
zombaria entre os teólogos e renascentistas, mas é importante esclarecer que
existem exageros sobre esse pensamento. Eles são sempre apresentados como pessoas
que se entregavam a discussões inúteis, como quantos anjos seria possível
colocar na cabeça de um alfinete! Essa discussão inútil que é atribuída a eles,
na verdade nunca aconteceu, embora tenham existido muitas discussões inúteis
teologicamente e filosoficamente. Erasmo de Roterdã estudou na Universidade de
Paris, onde o Escolasticismo era bastante influente. Ele afirmou que não
gostava das discussões inúteis e fúteis do escolasticismo, tais como: Deus poderia ter se tornado um pepino em vez
de ser um humano? Deus podia desfazer o passado, fazendo uma prostituta se
tornar uma virgem? ... A
fama tinha base em algumas questões reais! O Escolasticismo contribuiu para a
discussão sobre fé e razão. Pode ser definido como um movimento medieval que
enfatizou a justificação racional da fé religiosa e apresentação sistemática
dessas crenças. Ajudou na organização da teologia, com definições precisas e
detalhadas.
O principal teólogo desse período é sem dúvida
alguma Tomás de Aquino (1225-1274). Era um dominicano, foi um dos maiores
teólogos do catolicismo romano e escolásticos. Sua obra foi uma síntese de
Aristóteles e Agostinho, uma tentativa de conciliar doutrina bíblica com
filosofia grega. Sua obra esta dívida em três livros: 1 – Deus e Suas Obras; 2
– O Homem como Imagem de Deus; 3 – Cristo e os Meios de Graça. Sua tradução
para o inglês (de 1922) compreende 22 volumes.
Comentando
sobre a teologia defendida por Aquino e a influência da filosofia aristotélica,
afirmou Colin Brown:
A originalidade de Aquino, porém, não se acha tanto em quaisquer
introspecções dele próprio como na sua capacidade de produzir uma síntese
brilhante do pensamento prévio. Seu pensamento é uma liga formada pelo ensino
da Bíblia, as tradições da igreja e a filosofia, especialmente a de
Aristóteles, que tinha sido recentemente redescoberta...Como tal, possui muita
força. Mas também tem as fraquezas de uma liga. Pois há momentos em que os
elementos constituintes não se misturam, e quando um ou outro deles revela não
ser suficientemente durável.
Esse
aspecto é importante, pois a filosofia e a teologia andam juntas até certo
ponto, mas essa mistura em dado momento revelará fraquezas de ambas as partes,
por partirem de pressupostos diferentes, suas construções são fundamentadas em
alicerces diferentes, uma é a fé e a outra a razão e a experiência! A relação,
portanto, é sempre instável!
2.4
O Iluminismo e sua Influência na Teologia
O próximo passo, a partir da Renascença,
é a ênfase no poder da “Razão Humana”, o
que levou a humanidade ao iluminismo.
Nesse ponto, a razão humana toma o lugar de “juiz
da verdade”. Pai do Iluminismo, para
muitos, foi o filosofo René Descartes (1596-1650), introduzindo a dúvida como
princípio de raciocínio, o processo de duvidar levaria a investigação e a
certeza
E a religião para o iluminismo, como era
visto? Eles entendiam que a religião tinha um papel moral e social apenas, não
deveria se intrometer em questões de metafisica ou defesa de dogmas que a mente
humana não pudesse perscrutar. Entendiam que o estudo apropriado do homem é o
próprio homem.
Essa perspectiva iluminista da religião
e autonomia da razão, segundo Francis Schaeffer remonta ao tempo de Tomás de
Aquino, que com sua teologia natural abriu espaço para o que foi defendido no
iluminismo e continua em nosso tempo pós-moderno:
Na
concepção de Tomás de Aquino, a vontade humana estava caída, mas o intelecto
não estava. Esta visão incompleta da queda narrada na Bíblia implicou grandes
dificuldades subsequentes. A partir disto, com o passar do tempo, o intelecto
humano começou a ser visto como autônomo. Esta esfera de crescente autonomia
gerado por Tomás de Aquino expressava-se de várias formas. Um dos resultados,
por exemplo, manifestou-se pelo desenvolvimento da teologia natural. De acordo
com esta visão, a teologia natural é uma teologia que poderia ser praticada
independentemente das Escrituras. Tomás de Aquino certamente tinha a
expectativa de um a unidade e defenderia uma correlação entre a teologia
natural e as Escrituras. Mas o ponto mais importante que se seguiu foi o fato
de que um campo realmente autônomo foi criado.
O
filosofo Imanuel Kant entendia que a religião autêntica, inclusive o
cristianismo só seria valido se vivesse de acordo com deveres racionalmente
discerníveis. Essa seria a religião moderna, que influenciou o iluminismo e os
liberais clássicos.
Essa visão de Kant e depois de Georg Willhelm Friedrich Hegel (1770-1831)
tornava a fé cristã completamente oposta a ciência e a razão. Criou-se uma
dicotomia extremada entre fé e razão.
Para
entendermos o que Kant defendia é preciso considerar alguns fatores
intelectuais em sua visão e construção do pensamento. Historicamente, os
filósofos de 400 a.C. até 1.400 da nossa era, compreendiam que todo o
conhecimento filosófico se baseava na metafisica. Para esses pensadores
antigos, como Sócrates, Platão, as coisas possuíam uma existência autônoma,
independente da consciência humana, portanto, inatingível para o conhecimento.
O grande filosofo Aristóteles defendia que Deus é o ser amovível, a causa
primária de tudo que existe, ele não atua com providência no mundo,
logo não pode ser conhecido pelo homem. Já Agostinho e Tomás de Aquino,
acreditavam que Deus se revelava através da Bíblia e por isso podia ser
conhecido. Essa visão metafisica, conforme Kant entendia, impedia o verdadeiro
conhecimento a coragem de construir um verdadeiro pensamento. Com a renascença,
o homem teve coragem de navegar “mar
aberto” para construir seu próprio pensamento sem “as amarras da metafisica” antiga.
Imannuel Kant foi grandemente impactado pelas
descobertas cientificas de Isaac Newton (1642-1727). Kant entendeu que esse
desenvolvimento científico seria símbolo do conhecimento verdadeiro que a
ciência tinha trazido para o mundo, e que a filosofia se utilizaria dessas
técnicas para construir o verdadeiro conhecimento sobre a realidade, o mundo
fenomenal.
Na
realidade Kant fez uma síntese dos pensamentos dos filósofos ingleses como David Hume (1711-1776); Francis Bacon (1561-1626); John Locke (1632-1704); George Berkeley (1658-1753), chamados de
“empiristas”. E o pensamento conhecido como “inatismo” de René Descartes
(1596-1650). O porto seguro para essa concepção kantiana é construído sobre
aquilo que recebemos por nossa sensibilidade do mundo fenomenal e sistematizada
pela estrutura inata em nossa constituição humana.
Segundo
essa visão de Kant, o homem precisa das impressões sensíveis, mas intuições
precisam ser sistematizadas, organizadas pelas estruturas formais, presentes no
tempo e no espaço, descobertas e desenvolvidas pela ciência. O homem utilizando
sua própria estrutura lógica e as estruturas formais descobertas pela ciência,
o método correto ou as técnicas certas, poderá chegar ao verdadeiro
conhecimento e interpretação das impressões dadas pela realidade. Nós
construímos um verdadeiro conhecimento a partir de um “processamento” das impressões em nosso ser, e estas impressões
procedem de um contemplar da realidade que nos cerca. Quando observamos a
realidade (mundo fenomenal) e sistematizamos esse contemplar com a estrutura
inata, aumentamos o andaime da nossa construção racional, edificando um andar
por vez! Esse raciocínio de foi desenvolvido por Kant em seu livro “A Crítica da razão Pura”:
Não há dúvida de que
todo nosso conhecimento começa com a experiência; do contrário, por meio do que
a faculdade de conhecimento deveria ser despertada para o exercício senão
através de objetos que toquem nossos sentidos e em parte produzem por si
próprios representações, em parte põem em movimento a atividade de nosso
entendimento para compara-las, conectá-las ou separa-las e, desse modo,
assimilar a matéria bruta das impressões sensíveis a um conhecimento dos
objetos que se chama experiência?...
Outro
fator importante desse pensamento kantiano, é que a “razão” é a faculdade das ideias. É nela que o homem naturalmente
tem pensamentos inatos sobre: Deus, alma
e mundo. Essas ideias da razão, para Kant, são “ideias pensadas”, todavia, “não
conhecidas ou processadas pela estrutura inata”. Para Kant, era legitimo
pensar sobre essas “ideias”, mas
jamais afirmar ter um real “conhecimento
delas”. Porque? Porque elas não fazem parte da realidade (mundo fenomenal)
e sim do mundo das ideias (mundo numenal), logo Deus não pode ser conhecido
porque não se revela de forma concreta como parte da realidade (mundo
fenomenal).
Como Kant influenciou a teologia
liberal clássica?
O
primeiro ponto que abordo é a beleza intelectual das argumentações de Kant em
um momento que o ceticismo crescia muito no mundo e naturalmente atacava a
teologia cristã. Parecia uma boa resposta logica para os críticos as
argumentações de Kant sobre as interpretações dos fenômenos e as ideias
pensadas do mundo numenal! Nesse sentido, seria próprio racionalmente entender
que não podemos conhecer a Deus e ter ideias corretas ou dogmáticas sobre Ele,
pelo fato que tudo que sabemos a respeito de sua pessoa é partir de ideias
pensadas, e não processadas, sistematizadas pelo entendimento. Logo, a
Escritura não é a revelação especial de Deus para o homem, não existe milagre,
sobrenatural, porque tudo isso é fruto de “ideias
dos escritores da Bíblia”, da religião judaica, do cristianismo, e não de
uma revelação objetiva, segura, palpável, que pode ser sentida e sistematizada
pelo entendimento inato do homem!
Kant
é considerado como um fundador teórico do liberalismo teológico, em razão
desses teólogos terem edificado sua teologia diretamente sobre o pensamento de
Kant.
Mesmo na neo-ortodoxia vemos influência de Kant em Barth (1886-1968), quando
este defende que Deus é totalmente outro, ou quando a Escritura só é Palavra de
Deus quando revela Cristo a você, condicionando a inspiração da Escritura a
experiência. No liberalismo clássico temos a distinção que Bultmann (1884-1976)
fez entre o “Jesus Histórico” e o “Jesus da fé”, que seria na linguagem
kantiana o “Jesus Fenomenal” e o “Jesus Noumenal”.
2.4
O Neo ateísmo e sua Incompatibilidade Filosófica com a Teologia
Os
atentados terroristas são uma das formas que os ateus têm justificado todo tipo
de desgraça ao cristianismo, a religião e a crença na existência de Deus,
criou-se um campo fértil para o ateísmo. A proposta de um dos “novos ateus” mais proeminentes na
atualidade é Richard Dawkins, com o seu mais recente livro: Deus – um delírio. Ele argumenta no início
dessa obra que o mundo seria muito melhor sem o cristianismo e a religião:
Imagine, junto com John Lennon,
um mundo sem religião. Imagine o mundo sem ataques suicidas, sem o 11/9, sem o
7/7 londrino, sem as Cruzadas, sem caça às bruxas, sem a Conspiração da
Pólvora, sem a partição da índia, sem as guerras entre israelenses e
palestinos, sem massacres sérvios/croatas/muçulmanos, sem a perseguição de
judeus como "assassinos de Cristo", sem os "problemas" da
Irlanda do Norte, sem "assassinatos em nome da honra", sem
evangélicos televisivos de terno brilhante e cabelo bufante tirando dinheiro
dos ingênuos ("Deus quer que você doe até doer"). Imagine o mundo sem
o Talibã para explodir estátuas antigas, sem decapitações públicas de
blasfemos, sem o açoite da pele feminina pelo crime de ter se mostrado em um
centímetro. Aliás, meu colega Desmond Morris me informa que a magnífica canção
de John Lennon às vezes é executada nos Estados Unidos com a frase
"nenhuma religião” expurgada. Uma versão chegou à afronta de trocá-la por
"e uma religião".
Além
do campo aberto causado pela derrubada das torres e outros terrorismos em nome
da religião em várias partes do mundo, temos o escândalo no meio evangélico
causado por um número cada vez maior de pastores da Teologia da Prosperidade,
que tem escandalizado as pessoas e afastado do Evangelho prometendo riqueza
instantânea! Os curandeiros evangélicos fazem parte desse processo de
incredulidade mundial. Somado a tudo isso, a Igreja Católica Romana tem sido
constantemente denunciada por pedofilia praticada por muitos padres e bispos, o
que contribui ainda mais para o descrédito da religião e da existência de Deus.
Portanto,
não existe qualquer possibilidade de harmonia entre os pensamentos filosóficos
ateístas com a teologia cristã! Por uma simples razão, eles não creem na
existência de Deus, logo, não existe teologia! Se os erros do cristianismo
passados e presentes servem como argumento para tirar toda credibilidade
intelectual e religiosa da teologia cristã ou do próprio cristianismo, então,
posso utilizar o mesmo argumento para o ateísmo, pois quantos governos ateus e
sistemas políticos se levantaram e assassinaram milhares de religiosos,
principalmente cristãos? Não posso afirmar que todo ateu é assassino porque
muitos foram, mas da mesma forma não podem dizer que todo o cristianismo é composto
de pedófilos, gananciosos ou extremistas!
Considerações
Finais
A
teologia cristã e a filosofia sempre tiveram uma relação de intimidade, que as
vezes chegou abeira do divórcio! Contudo, a reconciliação sempre ocorreu,
produzindo, ao meu ver, benefícios para ambos os lados. A união conjugal dessas
duas áreas é realmente complementar, um lidera e outro auxilia! A dificuldade é
saber qual é o líder e qual é a auxiliadora idônea? Por vezes, existiram
inversões de valores, de funções, e por isso desarmonia na relação. Obviamente,
o teólogo irá dizer que a teologia é o esposo, e o filosofo dirá que a
filosofia é o esposo. Mas prefiro entender que nesse caso, a função será
determinada sempre pelo lado que tiver maiores fatores influentes.
Temos
pensadores que são considerados em ambos os lados, como C. S. Lewis, que
abandonou o ateísmo para abraçar o cristianismo, sem contudo, deixar de
utilizar seu lado filosófico. Ou Max Scheler, um filosofo alemão que não deixou
de utilizar da teologia em seus argumentos, ao ponto do Papa João Paulo II
afirma que a ética cristã deveria ser baseada em seus escritos.Temos
vários outros nomes, como o filosofo luterano Edmund Husserl,
Soren Kierkegaard que escreveu sobre a teologia e a igreja mesmo sendo um
filosofo demonstrou a grande influência teológica em seus pensamentos,
e por último cito o teólogo Francis Schaeffer que se caracterizava também, como
C. S. Lewis, como um grande pensador da sua época, que naturalmente pode ser
considerado um filosofo e teólogo.
Por
outro lado, a filosofia ateísta ou positivista não tem ligações diretas com a
teologia. Apesar que os ateus vão alegar que não tem nada contra o cristianismo
ou a religião, na prática sabemos que não é assim. A teologia, na perspectiva
puramente ateísta, é desprezada completamente, porque é inaceitável a ideia
metafisica da existência de Deus, tornando um diálogo ou relação impossível.
Entendo, que ambos pensamentos devem ser respeitados e nunca impostos por
nenhum lado, todavia, a ridicularização da fé é uma forma de imposição
intelectual! Para os ateus a fé, a religião, é um auto consolação, uma ilusão
que consola, não uma verdade subjetiva que se testemunha objetivamente!
Atualmente
existe uma relação amistosa da Filosofia com a Teologia, fora do campo do
ateísmo. Muito do raciocínio da Teologia Sistemática é construído com bases
filosóficas. A relação entre fé e razão é intrínseca e inevitável dentro do
pressuposto da existência de Deus. De um lado, temos a fé que se apoia no
transcendente e subjetivamente experimentável, e por outro, a razão que deseja
perscrutar, examinar e apalpar.
Concluo
afirmando que a teologia precisa da filosofia para construir o conhecimento,
para desenvolver raciocínios lógicos em torno de estudo bíblico e da
experiência humana. Por outro lado, a filosofia também precisa da teologia para
desenvolver-se sob princípios morais, éticos, que devem regular suas
construções logicas. Uma precisa da outra, e a relação é inevitável, porque
todos pensam sobre o sentido da vida, a essência da alma, as transformações, a
razão da morte, do mundo e de Deus! Todo mundo tem um pouco de filosofo e
teólogo, a profundidade e desenvolvimento, dependerá do alicerce que é construído
esse conhecimento!
Referências
BORNHEIM, G.A. Filósofos pré-socráticos, 14 Editora
São Paulo, Cultrix, 2007
BROWN, Colin Brown, Filosofia e Fé Cristã, Vida
Nova, São Paulo, 1983
BULTMANN, Rudolf Bultmann – Demitologização Coletâna de
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